Dir-se-á que é uma inevitabilidade subjacente à criação de uma regra fiscal que prima pela diminuição da carga fiscal, sempre sujeita a um elevado escrutínio de regras e condições, uma vez que estamos perante uma “despesa fiscal”. Contudo, não devia ser assim.
O ICE, criado pela Lei do Orçamento do Estado para 2023, e atualmente vertido no artigo 43.º-D do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), não foge a essa tendência.
Não querendo com este texto esgotar todas as questões técnicas que podem ter alguma margem de controvérsia relativamente à aplicação prática do ICE, irei focar-me na regra de reporte, para exercícios fiscais futuros, dos excessos do ICE (i.e., os valores da dedução fiscal nocional, calculada nos termos previstos no aludido artigo 43.º-D do EBF, que podem exceder os limites máximos previtos de dedução num dado exercício fiscal).
Relembrando de forma sumária o que se encontra previsto na lei, o ICE caracteriza-se por uma dedução nacional ao lucro tributável (ou seja, uma ficção que o legislador criou no sentido de assimilar a referida dedução como se a Empresa tivesse incorrido em gastos de financiamento efetivos mediante o recurso a dívida), em sede de IRC, correspondente a um determinado percentual aplicado ao aumento líquido elegível dos capitais próprios da Empresa. Esse percentual, para o ano de 2024, corresponde à aplicação da taxa Euribor a 12 meses, que corresponda à média do período de tributação, calculada tendo por base o último dia de cada mês, adicionada de um spread de 1,5 pontos percentuais, ao montante dos aumentos líquidos dos capitais próprios elegíveis, sendo ainda majorada em 50%.
Estabelece-se ainda no artigo 43.º-D do EBF que a mencionada dedução não pode exceder, em cada período de tributação, o maior dos seguintes limites: a) € 4.000.000; ou b) 30 % do resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos, nos termos do artigo 67.º do Código do IRC (i.e., o EBITDA fiscal).
Por fim, e com interesse para a discussão em análise, estabelece-se ainda no número 5 do artigo 43.º-D do EBF que a “parte da dedução que exceda o limite previsto na alínea b) do número anterior é dedutível na determinação do lucro tributável de um ou mais dos cinco períodos de tributação posteriores, após a dedução relativa a esse mesmo período, com os limites previstos no número anterior”.
Aparentemente, e pela leitura conjugada das normas em análise, o legislador apenas terá contemplado a hipótese de haver um reporte do excesso de ICE (i.e., para os 5 anos seguintes), quando o limite a aplicar seja os 30% do EBITDA fiscal. Dito de outro de modo, se por exemplo, uma Empresa tiver um EBITDA fiscal negativo (e que por conseguinte não seja este o limite a aplicar), e aplique o limite máximo abstrato previsto na lei (i.e., € 4.000.000), havendo excesso, o mesmo não será reportável para os exercícios seguintes.
Será que era esta a verdadeira intenção do legislador? Porque razão esta dedução não segue a mesma lógica que se encontra prevista no artigo 67.º do Código do IRC (i.e., a disposição que regula o regime dos gastos de financiamento), no âmbito do qual, quer se aplique o limite dos 30% do EBITDA fiscal, quer se aplique o limite máximo abstrato (i.e., € 1.000.000), havendo excesso, o mesmo é sempre reportável para os exercícios seguintes.
Adicionalmente, sendo o ICE uma antecipação de uma Proposta de Diretiva Comunitária (i.e., a comummente designada por DEBRA – Debt-Equity Bias Reduction Allowance), a qual prevê a introdução de um mecanismo de dedução fiscal de montantes correspondentes ao aumento dos capitais próprios num ano fiscal, em condições semelhantes àquelas que se encontram previstas para a dívida em termos semelhantes ao do ICE, e na qual a regra de reporte não seria tão restritiva, será que, efetivamente, este entendimento seria mesmo o que se pretendia?
Recordemo-nos da forma como o Executivo, à data da apresentação da Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2023, se referia a esta medida. De facto, o Executivo via nesta medida um forte estímulo (fiscal) à capitalização das Empresas. Nesta senda, a existência de uma restrição como aquela que anteriormente foi descrita funcionará em sentido contrário.
Em suma, talvez fosse tempo de vermos a Autoridade Tributária e Aduaneira a esclarecer esta questão (existem por certo, outras que carecem igualmente de alguma clarificação) que giram à volta da aplicação prática do ICE e que urge dar uma resposta clara. Caso contrário, serão os Tribunais, através da sua jurisprudência, que acabarão por dar a sua interpretação à forma como a lei que regula o ICE está redigida. Contudo, até chegar a esse ponto, o custo para os contribuintes (in casu, para as Empresas), e, em última análise, para o Estado, pode ser elevado.
Aguardemos então por cenas dos próximos capítulos!