Uma das formas usuais de as sociedades obterem financiamento é através da emissão de obrigações ou papel comercial. Em face da proibição, prevista na alínea b), do n.º 2 do artigo 5.° da Diretiva 2008/7/CE, do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, de sujeição a impostos indiretos (tal como o Imposto do Selo, doravante “IS”) neste tipo de operações, é consensual que estas operações não podem ser tributadas em sede de IS, ao contrário do que sucede na generalidade das operações de financiamento que se encontram sujeitas à verba 17.1 da Tabela Geral do IS (“TGIS”).
Contudo, no caso de financiamento externo (e.g., por um banco que subscreva as obrigações ou o papel comercial), tipicamente, o banco exige a prestação de garantias por parte do emitente das obrigações ou papel comercial, e o Código do IS também prevê, na verba 10 da TGIS, a tributação da prestação de garantias ao credor, inter alia, quando a operação de financiamento em causa não é enquadrável na TGIS (o que é precisamente o caso de uma emissão de obrigações ou de papel comercial).
Ora, ainda que as taxas de IS para a tributação de financiamentos e garantias sejam semelhantes nas duas verbas (variam em função do prazo, desde 0,04% até 0,6%), a base de incidência de IS é diferente. Nos termos da verba 17.1 (financiamento), o IS incide sobre o montante do capital emprestado, ao passo que na verba 10 (garantias) o IS incide sobre o valor máximo garantido. Regra geral, o valor máximo garantido é superior ao montante do capital emprestado, pelo que o contribuinte num financiamento externo fica, em sede de IS, numa situação pior do que aquela que resultaria se (i) o Direito da União Europeia não previsse a referida proibição e (ii) a TGIS expressamente tributasse a emissão de obrigações e papel comercial. De facto, se inexistisse a referida proibição e a verba 17.1 da TGIS fosse aplicável, o financiamento obtido seria tributado nos termos gerais, mas, em princípio, as garantias prestadas beneficiariam de uma exclusão de incidência de IS (de forma a evitar uma dupla tributação sobre a mesma operação económica, i.e., obtenção de financiamento com prestação de garantias por parte do devedor), pelo que, na prática, o contribuinte até suportaria um encargo menor de imposto do que aquele que suporta atualmente.
No entanto, o estado da arte sobre este tema pode ter sido significativamente alterado porque o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferiu o acórdão IMGA (processo n.º C-656/21, de 22 de dezembro de 2022), no qual decidiu que as comissões de comercialização de unidades de participação cobradas por bancos não devem ser sujeitas a IS porque se inserem na operação de “emissão” de unidades de participação. Segundo o TJUE, os serviços de comercialização (i.e., de dar a conhecer e comercializar junto do grande público as unidades de participação) prestados pelos bancos devem ser considerados como uma “diligência comercial necessária” à emissão de unidades de participação.
Em fevereiro de 2023, um contribuinte apresentou um pedido de constituição e de pronúncia arbitral no Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) sobre este tema. Em decisão datada de novembro de 2023, o CAAD suspendeu a instância e pediu esclarecimentos ao TJUE sobre a conformidade, em relação ao Direito da União, da sujeição a IS das garantias prestadas no contexto de uma emissão de obrigações.
Será que as garantias prestadas no contexto de uma “emissão” (desta vez) obrigacionista ou de papel comercial também não deverão ser sujeitas a IS pelo mesmo motivo referido acima, ou seja, as garantias devem ser consideradas como uma diligência comercial necessária para que um banco subscreva, em concreto, a emissão de obrigações ou de papel comercial nos moldes pretendidos pelo emitente (e.g., em termos de taxa de juro, maturidade, etc.)?
O tema é complexo. Desde logo, contrariamente ao que sucede no caso das comissões cobradas para a comercialização de unidades de participação, o Direito da União pode abrir a porta aos Estados-Membros para tributarem “privilégios” e hipotecas. No entanto, é controverso o que é que se deve entender por “privilégios” e, bem assim, também não é claro se, em face de decisões passadas do TJUE, o Direito da União deva ser interpretado no sentido de permitir a sujeição a um imposto indireto se a garantia em causa consistir numa hipoteca.
Entretanto, no passado mês de fevereiro, o Advogado-Geral publicou as suas conclusões sobre o processo que corre no CAAD. Segundo a opinião do Advogado-Geral, o Direito da União permite que os Estados-Membros tributem as garantias prestadas no contexto de uma emissão de obrigações, independente do tipo de garantia em causa e, assim sendo, por “privilégio” deve entender-se que o Direito da União pretendeu incluir todas as garantias (e.g., o penhor) que tenham por efeito constituir um direito preferencial semelhante àquele que é atribuído ao credor hipotecário na satisfação da obrigação garantida, em caso de incumprimento.
Ao longo do texto, o Advogado-Geral faz referências ao entendimento da Comissão sobre este tema. Embora não tenhamos acesso ao parecer elaborado pela Comissão, fica claro que existe uma divergência de opinião entre a Comissão e o Advogado-Geral. A Comissão parece defender que, regra geral, não deverá haver lugar à sujeição a IS nas garantias prestadas no contexto de uma emissão obrigacionista, salvo nos casos em que a garantia consista numa hipoteca ou privilégio. A Comissão parece entender que, por “privilégio”, o legislador da União pretendeu incluir outras construções jurídicas de garantias com natureza imobiliária (semelhantes à hipoteca). No fundo, segundo a Comissão, se a garantia prestada no contexto da emissão obrigacionista consistir, e.g., num penhor, então não deverá haver lugar à tributação em sede de IS.
Recentemente, num outro processo que correu no CAAD, datado de 3 de março, mas publicado em abril de 2025, o Tribunal Arbitral concluiu que não é conforme ao Direito da União a tributação de garantias prestadas no contexto de uma emissão obrigacionista. Neste processo o CAAD não recorreu ao TJUE, preferindo ao invés sustentar a sua decisão na jurisprudência já publicada por este Tribunal.
Em qualquer caso, entendemos que será a decisão do TJUE que marcará a tendência de futuras decisões arbitrais, judiciais e administrativas, ainda que não seja fácil antecipar qual será essa decisão. No entanto, é expectável que até ao final do ano o TJUE tome uma decisão. Neste sentido, recomendamos que os contribuintes tenham à mão os documentos que comprovam a liquidação de IS, nos termos da verba 10 da TGIS.
Em jeito de súmula, é caso para citar o acórdão do CAAD referido acima, datado de 3 de março, quando refere que “Proibir a tributação indireta de uma emissão de obrigações e permitir essa mesma tributação na prestação de garantias seria o mesmo que deixar entrar pela janela o que primeiro se fez sair pela porta”.