No acórdão de 8 de dezembro de 2022, proferido no Processo C-247/21, o TJUE veio pronunciar-se sobre a relevância de um dos requisitos para a aplicação das medidas de simplificação para operações triangulares intracomunitárias: a designação do destinatário final da entrega dos bens como sendo o devedor do imposto.
No caso em análise, a requerente, Luxury Trust Automobil GmbH, é um sujeito passivo estabelecido na Áustria que exerce atividades de corretagem e de venda de veículos de luxo, na União Europeia e em países terceiros. Em 2014, esta adquiriu a um fornecedor do Reino Unido três viaturas, que transmitiu a uma entidade da Chéquia, tendo os bens sido transportadas diretamente do Reino Unido para a Chéquia. A Luxury Trust adquiriu as viaturas com o seu número de identificação fiscal austríaco e, usando o mesmo número, emitiu as correspondentes faturas de venda à sociedade checa, sem liquidação de IVA e incluindo a menção “operação triangular intracomunitária isenta”. Pela falta da menção “Autoliquidação” nas faturas, a administração fiscal austríaca considerou que a simplificação para operações triangulares não se aplicava e que ocorrera uma aquisição de bens intracomunitária na Áustria, fixando o IVA devido em conformidade (sem assistir qualquer direito à dedução do mesmo).
A Luxury Trust contestou as liquidações de IVA pela via judicial e o Supremo Tribunal Administrativo da Áustria remeteu três questões prejudiciais para o TJUE, que no essencial visavam esclarecer, por um lado, se a menção “operação triangular intracomunitária isenta”, aliada ao facto de a fatura emitida pela Luxury Trust não incluir IVA, serviria adequadamente o propósito de designar o destinatário da entrega como devedor do imposto e, em caso de resposta negativa, se a omissão da menção “Autoliquidação” poderia ser retificada posteriormente, com efeitos retroativos.
Na Diretiva IVA, a alínea c) do n.º 1 do artigo 141.º estabelece que, para a aplicação da simplificação para operações triangulares, o destinatário da entrega dos bens deve ser designado como devedor do imposto, em conformidade com o artigo 197.º. Ao mesmo tempo, a alínea a), do artigo 42.º prevê que a derrogação do mecanismo de segurança do artigo 41.º se aplique apenas quando o adquirente numa aquisição intracomunitária prove que esta foi efetuada com vista a uma entrega posterior onde o destinatário foi designado como devedor do imposto, em conformidade com o artigo 197.º. Por sua vez, o artigo 197.º remete para os requisitos de faturação do artigo 226.º, o qual exige a inclusão da menção “Autoliquidação” quando o adquirente ou destinatário for devedor do imposto.
Considerandos estas disposições da Diretiva, o TJUE conclui que, nas faturas emitidas pela Luxury Trust em 2014, o destinatário da entrega não foi adequadamente designado como devedor do imposto, considerando que a omissão da menção “Autoliquidação” impede que seja esclarecida a razão pela qual a Luxury Trust não se considerou devedora do imposto. Dado o carácter facultativo da aplicação da simplificação para operações triangulares, tal omissão pode ainda ser interpretada como uma mera opção pela sua não-aplicação.
Adicionalmente, o TJUE considerou que a posterior retificação da omissão dessa referência mediante a sua inclusão nas faturas não constitui uma retificação, mas sim a emissão, pela primeira vez de um documento em que é manifestada a opção pela aplicação da simplificação para operações triangulares e a indicação ao adquirente da sua posição de devedor do imposto, donde a emissão de uma nova fatura não poderá ter efeitos retroativos.
Na medida em que se considere a menção “Autoliquidação” um requisito formal na faturação, esta decisão do TJUE aparenta contrastar com anterior jurisprudência relacionada com o princípio da “substância sobre a forma”. De facto, o TJUE tem vindo a considerar que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que seja concedida a dedução (acórdão C-516/14 Barlis) ou o reembolso do IVA a montante (ex: acórdão C-346-19, Bundeszentralamt fur Steuern) e a isenção de entregas intracomunitárias (ex: acórdão C-146-05, Collé) se as condições substanciais em causa forem satisfeitas, ainda que certas exigências formais tenham sido omitidas pelos sujeitos passivos.
Sucede, porém, que como refere a Advogada Geral Juliane Kokott, a questão que se coloca a respeito da inclusão ou não da menção “Autoliquidação” na fatura emitida pelo operador intermediário (in casu a Luxury Trust) não é uma questão reduzida a verificar se tal corresponde a um requisito material ou formal, mas ao invés saber qual o objetivo que o legislador persegue ao exigir a inclusão de tal menção na fatura. Só depois de identificado esse objetivo é possível concluir se a inclusão de tal menção é ou não absolutamente indispensável à aplicação do mecanismo de simplificação das operações triangulares.
E, no caso concreto da simplificação das operações triangulares a menção “Autoliquidação” visará a indicação pelo operador intermediário que optou pela aplicação do mecanismo de simplificação nas operações triangulares e por via dessa opção, que o adquirente se torna o devedor do IVA no Estado-Membro de chegada dos bens. O TJUE vem concluir que a omissão da menção “Autoliquidação” impede o cumprimento desse objetivo de indicação ao adquirente de que é o devedor do imposto e que impede que as autoridades fiscais confirmem a aplicação da simplificação das operações triangulares, razões pelas quais o TJUE considera a inclusão de tal menção como uma “condição de fundo”.
Assim, a decisão do TJUE veio aprofundar a jurisprudência “Substância sobre a forma”, alertando para os cuidados a ter quando se avalia a aplicabilidade de tal princípio. Como refere a Advogada Geral Juliane Kokott, a aplicação do princípio “substância sobre a forma” exige a análise dos próprios objetivos do legislador ao estabelecer certos requisitos, como a aposição da menção “Autoliquidação”, mais do que a mera classificação dos mesmos como formais ou materiais.