A Organização para a Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (“OCDE”) realizou um estudo no âmbito do Quadro Inclusivo da OCDE/G20 relativo à erosão da base tributável e à transferência de lucros (o tão afamado projeto “BEPS 2.0”), no sentido de assegurar que todas as empresas pagam uma quota-parte justa de imposto sobre lucros. Foi alcançado um acordo entre 137 países, entre os quais Portugal, para aplicação de uma taxa mínima de tributação sobre lucros de 15%.
Esta regra, apelidada de Pilar 2, que será abordada em maior detalhe infra e serviu de base à proposta de diretiva (doravante “Diretiva”), emanada pela Comissão Europeia (“CE”) em 22 de dezembro de 2021, relativa à fixação de um nível mínimo de tributação para os grupos multinacionais na União Europeia (“UE”) não é uma medida isolada. De facto, em particular, existem outras duas medidas previstas pela OCDE que terão impacto na tributação dos grupos multinacionais.
Desde logo, o chamado Pilar 1, que foi endereçado aos desafios decorrentes da digitalização da economia, o que permite que muitos negócios sejam desenvolvidos remotamente, por vezes, sem presença relevante (ou mesmo nenhuma) nos países-alvo que constituem muitos dos respetivos mercados. Neste caso, tenta-se aproximar a tributação – dos grupos multinacionais com receitas globais acima de Euros 20 mil milhões (podendo este montante a vir a ser reduzido para metade) e rentabilidade acima de 10% – ao território onde os lucros são gerados, mais concretamente, através de uma reafectação parcial dos direitos de tributação para as jurisdições de mercado onde sejam gerados pelo menos Euros 1 milhão de receitas (nalguns casos Euros 250 mil). Por conseguinte, pretende-se que 25% do lucro residual (lucro acima de 10%) seja alocado às jurisdições de mercado (onde os bens ou serviços são usados ou consumidos) com base na receita aí gerada, podendo o montante ser reduzido quando o lucro residual já é tributado numa jurisdição de mercado mediante um “safe harbour” de lucros de marketing e distribuição. Por outro lado, prevê-se a simplificação e otimização do princípio “arm’s length” para atividades domésticas de base, relacionadas marketing e distribuição. Em contrapartida, não devem ser cobrados Impostos sobre Serviços Digitais, uma prática adotada por alguns países no panorama internacional.
Em termos bilaterais, no âmbito de Convenções sobre a Dupla Tributação (“CDT”), encontra-se prevista uma regra de tributação mínima, a designada regra de sujeição a imposto (subject-to-tax rule ou “STTR”). Nestes termos, a ideia será que os países “derroguem” mediante acordo bilateral as regras das CDT e possam impor uma taxa de retenção nos pagamentos de royalties, juros, etc. a entidades relacionadas localizadas em jurisdições sujeitas a imposto a uma taxa inferior a 9%.
A proposta de Diretiva, objeto do presente artigo, correspondente ao Pilar 2, não visa abranger o Pilar 1 ou a STTR, embora possam existir algumas interligações, nomeadamente, o facto de o imposto retido nos termos da STTR poder ser considerado – na esfera do beneficiário do rendimento e que suporta a retenção na fonte – como um imposto abrangido ajustado (adjusted covered tax).
Posto isto, torna-se importante perceber o que é o Pilar 2 e o propósito da proposta de Diretiva recentemente publicada. A CE pretende uma adoção uniforme das regras do Pilar 2 no seio dos estados-membros da UE. Estas regras incluem as chamadas regras mundiais contra a erosão da base tributável (“GloBE rules”) que incluem uma regra de inclusão de rendimentos (income inclusion rule ou “IIR”) e uma regra de pagamentos subtributados (undertaxed payment rule ou “UTPR”).
Estas regras aplicam-se a grupos multinacionais (embora possam ficar excluídos nos primeiros 5 anos da fase inicial de atividade internacional, o que se entende ser o caso quando tenham um máximo de Euros 50 milhões de ativos tangíveis no exterior e que operem, no máximo, em 5 outras jurisdições) e grupos exclusivamente nacionais (não contemplado pela OCDE, beneficiando de uma exclusão durante um período transitório de 5 anos) com um nível de receitas consolidado de pelo menos Euros 750 milhões, em linha com o regime de informação financeira e fiscal de grupos multinacionais (mais conhecido por country-by-country reporting).
Excluem-se do âmbito as entidades públicas, as organizações internacionais, as organizações sem fins lucrativos, os fundos de pensões e as entidades de investimento e veículos de investimento imobiliário que sejam a entidade-mãe final (ultimate parent entity ou “UPE”) do grupo, bem como entidades detidas em pelo menos 95% (ou, nalguns casos, 85%) por aquelas entidades e que cumpram certas condições.
Existindo jurisdições onde o grupo tenha presença – através de uma ou mais subsidiárias ou estabelecimentos estáveis (consideradas como entidades constituintes ou “CE”) – e que tenham uma taxa de tributação efetiva inferior a 15%, as mesmas são consideradas como sendo de baixa tributação e, por conseguinte, em regra, o diferencial de imposto (imposto complementar ou “top-up tax”) para a taxa mínima de 15% deve ser pago pela entidade-mãe final do grupo no âmbito da IIR. Mas nem sempre será assim, seja porque o país da entidade-mãe final não adotou a IIR – podendo o top-up tax ser imputado a entidades-mãe intermédias – ou porque o país da CE adotou uma regra doméstica de imposto complementar (que lhe permite cobrar o top-up tax e assim evitar que o diferencial de imposto originado na sua jurisdição seja cobrado por outro país devendo esse imposto ser creditado contra o top-up tax a pagar pela entidade-mãe final ou intermédia).
A UTPR funciona como um complemento à IIR, na medida em que se aplica quando esta não foi adotada pelo país da entidade-mãe final (ou intermediária) ou esse país seja considerado de baixa tributação e não se verifique a cobrança do top-up tax pela jurisdição das CE nos termos da regra doméstica de imposto complementar. Nessa situação, o top-up tax será alocado às jurisdições relevantes com base numa fórmula que considera dois fatores: (i) número de trabalhadores e (ii) ativos tangíveis.
Em termos práticos, o estado-membro da entidade em causa deverá assegurar uma tributação efetiva mínima de 15% relativamente (i) às subsidiárias estrangeiras (quando a entidade-mãe final ou intermediária se encontra localizada nesse estado-membro), (ii) a todas as CE residentes nesse estado-membro e (iii) aos estabelecimentos estáveis de grupos multinacionais estabelecidos nesse estado-membro.
Como medida de simplificação, excluem-se as CE que, numa jurisdição, não atinjam uma receita média de Euros 10 milhões e apurem rendimentos relevantes ou prejuízos médios inferiores a Euros 1 milhão.
Em ambos os casos – IIR ou UTPR – o rendimento relevante ajustado sobre o qual é calculado o top-up tax tem em consideração o rendimento relevante apurado em cada jurisdição, ao qual será deduzido uma importância decorrente da substância – supostamente inerente ao desenvolvimento de atividades económicas reais – existente nessa jurisdição (apurada com base em 5% dos custos salariais e do valor contabilístico dos ativos tangíveis elegíveis, taxa que começa em 10% para os custos salariais e em 8% para os ativos tangíveis, sendo progressivamente reduzidas até 2032).
Resumidamente, os passos mais relevantes para se aferir o top-up tax e a respetiva alocação são os seguintes:
- Aferir o perímetro do grupo abrangido;
- Determinar o rendimento relevante ajustado por jurisdição;
- Determinar o imposto abrangido ajustado por jurisdição;
- Cálculo da taxa efetiva de tributação (dividindo o imposto abrangido ajustado pelo rendimento relevante);
- Apurar a diferença positiva entre a taxa mínima de 15% e a taxa efetiva de tributação na jurisdição;
- Aplicar a diferença de taxas ao rendimento relevante ajustado deduzido com base em critérios de substância na jurisdição;
- Repartir o imposto complementar entre as CE da jurisdição em função do respetivo rendimento relevante ajustado;
- Identificar onde será devido o imposto complementar, nos termos das regras IIR ou UTPR.
Para que tudo isto seja exequível, as CE (ou uma entidade local designada) apresentam uma declaração anual – no prazo de 15 meses (18 meses na primeira vez) do final do período de tributação – que permita o apuramento do imposto complementar a pagar e onde o mesmo deverá ser pago. Caso a declaração seja apresentada por uma entidade-mãe numa jurisdição com acordo de troca de informações, deve a CE local informar disso mesmo às respetivas autoridades fiscais.
Nos termos da proposta de Diretiva, a IIR deverá começar a ser aplicada em 2023, enquanto que a UTPR deverá começar a ser aplicada em 2024. Não obstante, tal depende da aprovação unanime da proposta de Diretiva – sendo que todos os estados-membros acordaram no princípio de aplicação de tais regras no âmbito do Quadro Inclusivo da OCDE/G20 – e da sua transposição para as respetivas legislações domésticas até final de 2022.
Ao contrário do Common Consolidated Corporate Tax Base (“CCCTB”) – o qual visava a introdução de regras comuns para o cálculo do imposto e a possibilidade de consolidação fiscal entre os vários estados-membros –, proposto pela CE inicialmente em 2011 e relançado novamente em 2016, em que não se passou da teoria (pelo menos por enquanto), a aplicação do Pilar 2 no seio da UE será, com certeza, levada à prática num futuro muito próximo.
Neste contexto, os grupos empresariais devem começar desde já a monitorizar o potencial impacto desta situação nas suas operações e encetar todos os esforços no sentido de se preparem para esta nova realidade fiscal.