Opinião

Reembolso de despesas profissionais dos colaboradores em teletrabalho: primeiros passos encorajadores, mas muito trabalho pela frente

Se no passado mês de junho aqui comentámos os vários projetos de lei apresentados pelos partidos com assento parlamentar com vista à atualização da legislação que regula o teletrabalho, especificamente no que respeita à necessidade de regular a compensação aos trabalhadores de acréscimos de despesas incorridos com a adoção do regime de teletrabalho, eis que, numa altura em que já nos encontramos a queimar “os últimos cartuxos” do ano de 2021, foi aprovado na Assembleia da República, em sede de votação final global, o texto de substituição entretanto apresentado pela Comissão de Trabalho e Segurança Social em resposta aos referidos projetos de lei.   Na atualização do regime do teletrabalho, o Governo e os seus parceiros políticos tiveram uma oportunidade única de navegar à vista, podendo construir sobre a experiência e os desafios práticos vividos intensamente desde março de 2020. E se podemos dizer que, na sua generalidade, os principais problemas associados à aplicação generalizada do regime do teletrabalho foram identificados, a resposta dada é encorajadora, mas, nos moldes atuais, provavelmente insuficiente.    Se, por um lado, tal como expectável, verificou-se uma consolidação e articulação das várias propostas inicialmente apresentadas pelos partidos políticos, seria de esperar um refinamento de diversos…

Se no passado mês de junho aqui comentámos os vários projetos de lei apresentados pelos partidos com assento parlamentar com vista à atualização da legislação que regula o teletrabalho, especificamente no que respeita à necessidade de regular a compensação aos trabalhadores de acréscimos de despesas incorridos com a adoção do regime de teletrabalho, eis que, numa altura em que já nos encontramos a queimar “os últimos cartuxos” do ano de 2021, foi aprovado na Assembleia da República, em sede de votação final global, o texto de substituição entretanto apresentado pela Comissão de Trabalho e Segurança Social em resposta aos referidos projetos de lei.

 

Na atualização do regime do teletrabalho, o Governo e os seus parceiros políticos tiveram uma oportunidade única de navegar à vista, podendo construir sobre a experiência e os desafios práticos vividos intensamente desde março de 2020. E se podemos dizer que, na sua generalidade, os principais problemas associados à aplicação generalizada do regime do teletrabalho foram identificados, a resposta dada é encorajadora, mas, nos moldes atuais, provavelmente insuficiente. 

 

Se, por um lado, tal como expectável, verificou-se uma consolidação e articulação das várias propostas inicialmente apresentadas pelos partidos políticos, seria de esperar um refinamento de diversos aspetos relacionados com a regulação das diversas medidas, no sentido de alinhar os regimes com a realidade a que as empresas e os trabalhadores foram forçados a adaptar-se no auge da pandemia gerada com a propagação da doença COVID-19 e definir critérios objetivos e específicos que minimizem o grau de arbitrariedade e discricionariedade na aplicação dos regimes. Mas, particularmente no que respeita ao reembolso de despesas profissionais dos colaboradores em teletrabalho, terão estes propósitos sido cumpridos? 

 

Se, na sua génese, o regime dá resposta à necessidade de regular a compensação do acréscimo de despesas profissionais incorridas pelos colaboradores em teletrabalho, reconhecendo que estas devem configurar gastos aceite fiscalmente na esfera das empresas, em sede de IRC, e não constituem rendimento para o trabalhador, a verdade é que deixa muitas pontas soltas. Senão vejamos,

 

Teletrabalho só com acordo escrito? Como fica o trabalho flexível?

 

De acordo com o novo regime, está previsto que a implementação do teletrabalho dependa sempre de acordo escrito, que pode constar no contrato de trabalho inicial ou ser autónomo em relação a ele, embora se refira, tal como anteriormente, que a forma escrita é exigida apenas para prova da estipulação do regime de teletrabalho. O referido acordo deverá definir o regime de permanência ou alternância de períodos de trabalho à distância e de trabalho presencial, devendo, entre outros termos e condições, prever o local em que o trabalhador realizará habitualmente o seu trabalho, o qual será considerado, para todos os efeitos legais, o seu local de trabalho.

 

Ora, se, por um lado, se entende que o legislador queira assegurar a proteção dos direitos dos trabalhadores, a verdade é que, por força da implementação generalizada do teletrabalho em função da pandemia, uma grande parte dos empregadores e trabalhadores que poderão vir a usufruir deste regime já o aplicaram com um nível de formalismo necessariamente muito mais reduzido e, genericamente, de forma bem-sucedida, desde março de 2020. Ao mesmo tempo, não podemos desconsiderar que o mundo caminha para um cenário de cada vez maior flexibilização da prestação de trabalho, com os empregadores a conferirem aos trabalhadores significativa liberdade para definição de horários e locais de trabalho, liberdade essa que poderá não se coadunar com os formalismos exigidos pelo regime que será, como tudo indica, implementado. De facto, se nos projetos de lei inicialmente apresentados foi proposta a introdução do conceito de trabalho flexível, a verdade é que este não se encontra expressamente previsto na redação do regime aprovada, embora possa, eventualmente, caber neste regime, dependendo da interpretação conferida à sua redação e da forma como o trabalho flexível venha a ser aplicado. Abriram-se, assim, portas à tão indesejada ambiguidade, infelizmente, diga-se! 

 

Ao mesmo tempo, ainda que o regime refira que a forma escrita apenas é exigida para prova da estipulação do regime de teletrabalho, a verdade é que, por exemplo, a necessidade de controlo de questões fiscais associadas ao regime deverá potenciar significativamente o número de casos em que a prova da efetiva aplicação do regime de teletrabalho será relevante. Obrigar empregadores que já têm um regime de teletrabalho ou trabalho flexível implementado e sedimentado por força da pandemia, muitos dos quais empregam largas centenas ou mesmo milhares de trabalhadores, a formalizar estes acordos não parece ser benéfico para as empresas nem para os colaboradores, criando uma carga administrativa e burocrática que poderá desincentivar fortemente a aplicação deste regime ou, pior ainda, incentivar a sua aplicação sem total conformidade com o regime legal em vigor.

 

A problemática da definição e mensuração das despesas profissionais passíveis de compensação

 

A atualização do regime do teletrabalho prevê que devem ser compensadas pelo empregador as despesas adicionais incorridas pelo trabalhador como direta consequência da aquisição ou do uso dos equipamentos e sistemas informáticos ou telemáticos na realização do trabalho, incluindo os acréscimos de custos de energia e de rede instalada no local de trabalho em condições de velocidade compatível com as necessidades de comunicação de serviço, assim como os de manutenção destes equipamentos e sistemas. O regime concretiza, ainda, que se consideram despesas adicionais as correspondentes à aquisição de bens e/ou serviços de que o trabalhador não dispunha antes da celebração do acordo, assim como as determinadas por comparação com as despesas homólogas do trabalhador no mesmo mês do último ano anterior à aplicação desse acordo. A compensação paga ao trabalhador, nestes termos, constitui um gasto fiscalmente aceite na esfera da empresa, em sede de IRC, e não constitui rendimento do trabalhador.

 

Se, no que respeita à aquisição de novos equipamentos e serviços, a aplicação do regime parece ser mais ou menos pacífica, havendo essencialmente a problemática de garantir que não existe um aproveitamento abusivo do regime para a aquisição de equipamentos e serviços para uso iminentemente pessoal pelos trabalhadores, no que respeita à definição e mensuração das despesas adicionais incorridas com energia e rede, o procedimento não será, de todo, pacífico. De facto, facilmente se percebe que poderão ocorrer factos extraordinários nos meses de referência que comprometem esta análise comparativa, seja em benefício ou em prejuízo do trabalhador, criando uma significativa e indesejada aleatoriedade nos efeitos práticos da aplicação do regime. Estes efeitos poderiam ser minimizados se estivessem previstos cenários alternativos de comparação com um período de referência mais alargado (p.e., mesmo mês dos últimos 3 anos ou o mesmo mês do último ano e os dois anteriores).

 

Ao mesmo tempo, e não fechando o rol de temas na operacionalização da compensação de despesas profissionais, haverá uma necessidade de articular a dedutibilidade destas despesas com os formalismos exigidos para a dedutibilidade fiscal de gastos em sede de IRC. De facto, regra geral, o Código do IRC faz depender a dedutibilidade de gastos empresariais da existência de fatura ou documento equivalente emitido em nome da empresa. A questão aparenta ser mais pacífica no que toca, por exemplo, à aquisição de novos equipamentos e serviços, contudo, fica um vazio legal no que respeita à documentação de suporte à compensação do aumento de despesas com energia e rede, na medida em que, previsivelmente, as faturas serão emitidas em nome dos trabalhadores e não será razoável obrigar as empresas a cumprirem com os tradicionais requisitos formais.

 

Vamos esquecer o período desde março de 2020?

 

Se se considerar que muitos dos acordos de teletrabalho a celebrar ao abrigo do presente regime constituem, de facto, uma formalização de uma prática que já vem sendo utilizada desde março de 2020, a verdade é que, em muitos casos (para não dizer na maioria) o acréscimo de custos decorrente do teletrabalho já se verificou em 2020 e 2021, pelo que uma eventual aferição do aumento de despesas a efetuar nos anos de 2022 e seguintes encontrar-se-á necessariamente “enviesada” em prejuízo do trabalhador! Ao mesmo tempo, fica por definir o enquadramento fiscal a conferir às despesas realizadas desde março de 2020…

 

A este respeito, entendemos que uma possível solução poderá passar pela introdução de um regime transitório e/ou extraordinário que determine expressamente o enquadramento fiscal a conferir a despesas profissionais incorridas pelos trabalhadores em teletrabalho no período desde março de 2020 até à entrada em vigor deste regime, sob pena de haver um claro prejuízo para os trabalhadores e para as empresas.

 

Conclusão: Primeiros passos encorajadores, mas muito trabalho pela frente.

 

Se os principais contornos do regime parecem ir de encontro aos grandes desafios e necessidades impostos pela generalização do teletrabalho, será importante pensar, desde já, em refinar o regime ou criar legislação auxiliar / suplementar que se ajuste às potenciais dificuldades de operacionalização do mesmo, sob pena de se criar uma lei sem efeitos práticos, que não passaria, de facto, de uma declaração de intenções. Como se diz na gíria, “de boas intenções está o inferno cheio”, pelo que assume capital importância minimizar os vazios legais e as zonas cinzentas, pois a experiência revela-nos que a aplicação da “lei do bom senso” geralmente leva a um clima de incerteza e a uma indesejada discordância entre a administração fiscal e os contribuintes.