Passámos, num ápice, da lógica relacional da aldeia global, para a microresiliência da pequena aldeia gaulesa que se encerra sob si mesma, tentando resistir eternamente ao invasor, dia após dia. Deste vez não são os Romanos que invadem, antes os invadidos, entre outros. Que o digam Bergamo, Mediglia ou Milão. Assim estamos com o coronavírus (COVID 19). Mas é nestes momentos de dificuldade extrema que, enquanto sociedade, devemos procurar dar o nosso melhor. Aquela extra-mile que nos leva a superar preconceitos, ideologias e credos enquanto famílias, empresas e Estado. Chegamos assim ao ponto fulcral da discussão de um eventual plano Marshall (ou Plano Xi) para a Europa e em consequência, para a realidade Portuguesa. É dentro desta lógica do Estado enquanto bonus pater familiae, que todavia consome mais de 30% do Produto Interno Bruto Português, que se devem abrir mão dos instrumentos fiscais disponíveis para robustecer o tecido empresarial nacional nesta viagem pela intempérie.
Falemos mais concretamente do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA). Das poucas medidas em sede de IVA, aquela que tem vindo a ser veiculada no âmbito do pacote de apoio à economia Portuguesa consiste no fracionamento do pagamento do imposto em três prestações mensais, sem juros, ou em seis prestações sendo aplicáveis juros de mora às três últimas prestações mensais. Parece pouco e desalinhado das reais necessidades de liquidez que os agentes económicos efetivamente apresentam neste momento de urgência nacional. Não exigiriam as circunstâncias atuais que se desagravasse o pagamento do IVA de todo? Por períodos compartimentados, reduzidos, devidamente estanques e identificados, reavaliáveis numa base regular? Um período de quarentena alargado não se compadece com a necessidade de recuperação económica no curto-médio prazo. E se sabemos que o segundo trimestre corresponde tradicionalmente a um mês forte de receita em sede de IVA, pois coincide com o início do período turístico onde os operadores enquadrados no regime trimestral, por exemplo restaurantes e afins entregam o IVA respeitante ao segundo trimestre até 15 de agosto, este ano será certamente diferente, para pior.
Estando o mal consumado, importava sobretudo disponibilizar liquidez às empresas, ainda que na forma de suspensão do cumprimento da obrigação tributária. Neste sentido, e na ausência de medidas adicionais em sede de tributação indireta, importa perceber o que podem os agentes económicos fazer por forma a enfrentar este tsunami económico que se vaticina ou, pelo menos, mitigar os seus efeitos. Neste domínio, toda e qualquer estratégia que permita gerar cash-flows adicionais é bem-vinda e mais desejável que nunca. Comecemos pelos eventos (v.g. conferências, feiras, reuniões, etc.) cancelados. Quantos no shows em hotelaria, cancelamentos de reservas para todas as tipologias de alojamento ou anulações de congressos, conferências, eventos desportivos e atividades similares tiveram lugar nos últimos meses? E será que os pagamentos antecipados foram já objeto de notas de crédito cujo imposto pode ser regularizado a favor das empresas? Ou mesmo que não o tenham sido por força do diferimento no tempo da realização do evento, a dedução do imposto ab initio foi efetuada? Em boa verdade e à luz das interpretações do Tribunal de Justiça da União Europeia tal direito à dedução pode e deve ser exercido no imediato, não devendo ser questionado por força das expectativas inerentes à prática de atividades económicas que conferem direito à dedução, concretizadas ou não.
O mesmo será dizer dos ganhos imediatos de liquidez pela adesão ao mecanismo de autoliquidação do IVA na importação, o qual se traduz pelo não pagamento do imposto nas alfândegas mediante a importação de bens. Revisitar a eventual adoção deste regime pode gerar um cash-flow temporário significativo, para além de uma maior eficiência nos processos aduaneiros e a sua transitividade para o compliance fiscal. Esta estratégia afigura-se tão mais importante quanto mais relevante se torna a procura de fornecedores fora da União Europeia, por força de restrições à exportação de determinados bens de equipamento ou de capital intensivo impostos por alguns Estados-Membros.
É igualmente tempo de os operadores económicos efetuarem um controlo rigoroso dos seus clientes em processos de insolvência ou planos de recuperação de empresas, procurando maximizar a recuperação do IVA destes créditos incobráveis, aplicando-se igual procedimento aos créditos em mora.
As possibilidades de titularização de dívidas ou factoring afiguram-se igualmente boas estratégias de minimização de perdas de IVA, potenciadoras de ganhos de liquidez imediatos.
Outras estratégias existem geradoras de cash-flows significativos, como a reclassificação pautal de produtos ou a aplicação de taxas reduzidas de IVA a determinados bens, ou mesmo isenções de impostos especiais de consumo. Veja-se o exemplo do álcool produzido em destilarias de bebidas espirituosas a ser utilizado para fins sanitários, aproveitando neste sentido da isenção em sede de IABA.
Também a faturação eletrónica assume neste contexto especial importância. A disrupção nas cadeias de distribuição determina a necessidade de alterar metodologias de procedimentos em sede de IVA. O shut down de atividades de produção de bens ou serviços, ou mesmo a sua restrição em termos de horas diárias de funcionamento podem afetar a circulação de documentos, entre os quais as faturas físicas enviadas a clientes. Com a faturação eletrónica ganham-se dias ou mesmo semanas de cobrança, contribuindo-se igualmente para um ambiente de negócios recatado e minimizador de riscos de contágio.
Outras estratégias haverá certamente, variando na sua estrutura, eficiência e intensidade em razão das indústrias e setores de atividade nos quais as empresas se inserem. Mas voltemos ao bonus pater familiae. É igualmente necessário que o Estado seja uma âncora de suporte à atividade económica global. Afigura-se fundamental a suspensão de alterações legislativas no imediato, impossíveis de implementar pelas empresas nas circunstâncias atuais, assim como é importantíssimo uma aceleração do pagamento do IVA solicitado em sede de reembolsos, ou a suspensão temporária de inspeções externas às empresas em matéria de IVA. Deve ainda ser promovida pelo Estado uma maior flexibilidade na dedução do imposto ou na destruição de bens relativamente a eventos cancelados, assim como no timing das regularizações de IVA. Os tempos são de exceção, assim como as medidas terão que ser excecionais, aplicadas com urgência imediata e precisão cirúrgica, sem receio que o céu nos caia em cima. Por toutatis!